Talvez a palavra que melhor defina o indefinível Augusto dos Anjos seja frustração. Embora tenha vivido em um período em que as vanguardas literárias do séc. XIX eclodiam e confluíam umas com as outras, o poeta não pode ser rotulado de parnasiano, apesar de que a maioria dos poemas de sua única obra, Eu (1912), sejam sonetos, forma poética muito cultivada durante o Parnasianismo; Augusto dos Anjos também não se enquadra ao Naturalismo, a despeito do cientificismo dos vocábulos presentes em seus poemas, além do realismo cru com que o poeta descrevia o seu universo; Sua obra também não pode ser classificada de Simbolista, embora Augusto recorresse ao misticismo e a musicalidade, característica do movimento surgido na França, cujos principais representantes eram Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé.
Para compreender o deslocamento do poeta em relação à época em que viveu, convencionou-se enquadrá-lo ao Pré-Modernismo, apesar de sua obra colidir com as características e ideais nacionalistas do movimento, além de não contribuir nas inovações formais que caracterizaram o Pré-Modernismo.
Augusto dos Anjos é o poeta da frustração, dos sonhos perdidos, da desesperança, da descrença na humanidade. Ele é “aquele que ficou sozinho, cantando sobre os ossos do caminho a poesia de tudo quanto é morto”, como definiu a si mesmo em “O Poeta do Hediondo”, soneto presente em Eu, publicado em 1912. Farei uma breve análise do soneto “Agonia de um filósofo”, o segundo poema de Eu e outras poesias.
AGONIA DE UM FILÓSOFO
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal do Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
(ANJOS, 2004, p. 37)
A presença de vocábulos estrangeiros, neste caso, nomes próprios, bem como a freqüência de termos filosóficos e científicos marca a obra de Augusto dos Anjos. Temos diante de nós: Phtah-Hotep, o sábio egípcio, Rig-Veda, livros de sabedoria dos hindus, Anaximandro de Mileto, filósofo grego, Haeckel, cientista, e Goethe, um dos maiores pensadores da história da humanidade. O eu - lírico afirma que todo o saber proveniente dessa verdadeira “enciclopédia do conhecimento” é tão vazio quanto sua própria filosofia.
“Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...”
“Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!”
O “velário espesso” pode ser interpretado como o “véu de maia” do hinduísmo de que Schopenhauer fala em O Mundo como Vontade e Representação, a respeito da representação (o mundo dos fenômenos) que encobre a essência das coisas, a Vontade. Basta lembrar que o poeta teve contato com a obra do genial filósofo alemão, como podemos encontrar nos versos de “O Meu Nirvana”:
“Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéia Soberana!”
(ANJOS, 2004, p. 128-129)
O filósofo do título do soneto é ele mesmo, Augusto dos Anjos. Só que ao contrário da intenção de transcendência da filosofia (amar o saber), o filósofo se dá conta da sua insuficiência diante da incompreensão do mundo, e a ânsia pelo absoluto fracassa na limitação do ser humano, como se o verdadeiro conhecimento fosse inalcançável ao homem, constatação de Kant em Crítica da Razão Pura. É da incapacidade, da limitação, do fato do homem ser um Deus acorrentado a um corpo que apodrece (Becker), do simples fato de o homem ser mortal, ser-apenas-humano, e não intelecto puro, é que nasce a agonia. O homem pensa, o homem é quase um Deus, mas ele sofre por estar preso pelas barreiras do “quase”, sofre porque pensa e, pelo fato de pensar, sabe que vai morrer.
“O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a cólica fúria do harmatã inquieto!”
As descobertas da psicanálise a respeito dos mecanismos do subconsciente, por Sigmund Freud, são contemporâneas às inquietações do poeta, bem como a teoria de Ernst Haeckel de que aquilo que entendemos por viver, ou seja, a vida, não passa de fenômenos químicos, como a combustão do carbono. “Então era isso a vida?”, como disse Nietzsche. Augusto dos Anjos não se conforma com isso. Como pode a vida originar-se do fenômeno químico, se a essência da vida é em-si, e os fenômenos são para-si? Há uma causa primeira para todas as coisas, pois “do nada nada vem”. Este, aliás, é o axioma do pré-socrático Anaximandro de Mileto.
“Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal do Anaximandro de Mileto!”
Para o filósofo, o princípio universal é uma substância indefinida, o ápeiron (ilimitado). Deste ápeiron, infinito, eterno, em movimento perpétuo e dotado de vida e imortalidade derivam os diferentes corpos por um processo de separação. Em suma, tudo deriva de uma mesma matéria, tudo seria, nos termos de Schopenhauer, Vontade, ou seja, um querer cego e irracional e sem qualquer finalidade é o princípio de todas as coisas. No princípio era o caos, como pensavam os gregos antigos. Para Augusto dos Anjos, o fim também será assim.
REFERÊNCIAS:
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. São Paulo: Martin Claret, 2004.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
O LUCRO DE UNS É O PREJUÍZO DE OUTROS
“O ateniense Demades condenou um homem de sua cidade, cujo ofício era vender as coisas necessárias para os enterros, sob o pretexto de que seu comércio queria tirar demasiado proveito e de que tal lucro não podia ser alcançado sem a morte de muitas pessoas. Essa sentença me parece errada, tanto mais, porque nenhum proveito nem vantagem se alcançam sem o prejuízo dos demais; segundo esse juízo havia de se condenar, como ilegítimas, todo tipo de ganâncias; o lavrador se aproveita da falta do trigo; o arquiteto, da destruição das construções; os procuradores de justiça, dos litígios processuais que constantemente têm lugar entre os homens; a própria honra e prática dos representantes da religião deve-se a nossa morte e aos nossos vícios; a nenhum médico lhe é agradável sequer a saúde de seus próprios amigos, disse um autor cômico grego, nem a nenhum soldado o sossego de sua cidade, e assim sucessivamente. Pode-se acrescentar ainda: examine a cada um nos desejos mais recônditos de seu espírito, e encontrará que nossos mais íntimos desejos, na maioria dos casos, nascem e se alimentam a custa de nossos semelhantes. Tudo isto considerado, convenço-me de que a natureza não se contradiz neste ponto em seu progresso geral, pois os naturalistas asseguram que o nascimento, nutrição e multiplicação de cada coisa tem sua origem na putrefação e destruição de outra.”
REFERÊNCIAS:
Ensaios, de Michel de Montaigne. Tradução livre da edição espanhola
REFERÊNCIAS:
Ensaios, de Michel de Montaigne. Tradução livre da edição espanhola
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