sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL


“L’amour est à réinventer.”
Arthur Rimbaud

JULES E JIM – UM AMOR PARA DOIS

Jules et Jim. 1962. FRA. Dir: François Truffaut. Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado no romance homônimo de Henri Pierre Roché. Prod.: Les Films du Carosse e Sedif. Foto: Raoul Coutard. Edição: Cladine Bouche. Com: Jeanne Moreau, Henri Serre e Oskar Werner.

1. O TURBILHÃO DA VIDA

Jules e Jim, obra-prima de François Truffaut, é um dos principais expoentes da Nouvelle Vague, vanguarda cinematográfica que tinha por objetivo revigorar o cinema francês, dando primazia ao papel do diretor, em detrimento das grandes produções realizadas em estúdio.

A principal proposta da Nouvelle Vague era a realização de filmes baratos, inovadores, intimistas, repletos da força e energia da juventude, em que cada diretor traria sua marca pessoal, isto é, cada filme deveria trazer uma espécie de assinatura poética, particular a cada “autor”. Embora a Nouvelle Vague só estreasse em 1959, com os filmes Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais, Acossado, de Jean-Luc Godard, e Os Incompreendidos, de François Truffaut, a política do “cinema de autor” tem a sua gênese na publicação do artigo “Une certainne tendance du cinéma français”, em 1954, na revista Cahiers du Cinéma, escrito pelo então crítico François Truffaut. A política de autor, a qual cada diretor seria responsável pela roteirização, produção, edição, escolha de elenco e da trilha sonora etc., tinha como modelo Alfred Hitchcock, arquétipo par excellence dessa concepção sobre o cinema moderno. Não à toa, Truffaut, que realizaria, na década de 1960, uma série de entrevistas com “o mestre do suspense”1, via na obra de seu grande ídolo uma série de particularidades intrínsecas ao seu estilo de contar histórias, em outras palavras, quando o espectador assistia aos seus filmes, notava as características que identificavam o seu estilo de filmar. Truffaut via em Hitchcock o modelo do “autor total”, do gênio criador, e como qualquer discípulo que, a despeito da admiração, não quer viver à sombra do mestre, sujeito à sua influência, o cineasta francês criou a sua própria maneira de contar histórias, isto é, a partir de suas experiências biográficas, Truffaut inventou um cinema que falava do amor, da amizade, da infância, do amor ao cinema e da morte, porém, tudo isto com sua marca pessoal, sua assinatura poética.

Jules e Jim não é apenas um filme sobre o amor, nem um filme sobre a amizade; tampouco, é um filme de amor sobre a amizade, nem um filme de amizade sobre o amor. Jules e Jim é, antes de tudo, um filme sobre os instantes, isto é, sobre os instantes da vida. De acordo com a velha “filosofia de botequim”, a vida é feita de instantes. Porém, mais do que isso, a vida é feita de instantes que são experienciados, instantes plenos e eternos. Ora, para Benjamin, o cinema, devido à sua natureza reprodutível, é uma arte sem “aura”, sem o hic et nunc da criação artística. Isto parece demasiado estéril, pois, ao contrário disso, o cinema é a única arte capaz de apreender o tempo. De acordo com Benjamin, “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra”2. Isto significa dizer que todas as artes, exceto a pintura, a escultura e a arquitetura, perderam a sua “aura do aqui e agora”. Contudo, a fotografia, arte que apreende o instante, bem como o cinema, em que cada segundo corresponde a 24 fotogramas, são artes do momento. De acordo com Jacques Aumont,

“(...) o cinema tem a capacidade intrínseca de captar o tempo, de 'pegar o que quer da vida', sem ter de trabalhar nisso particularmente. O cinema é a arte (e a técnica) da captação passiva do tempo dos acontecimentos, como a esponja que absorve a água; a substância do cinematógrafo é o tempo do acontecimento - e talvez, simplesmente, o tempo.”

O cinema é, portanto, a arte do tempo, a arte dos instantes. Truffaut, que, além de cineasta, era um dos principais teórico do cinema, tinha completa noção daquilo que realizava. Quando o narrador de Jules e Jim afirma em certo momento: “Eles sabiam que nada voltaria a ser como antes”, está, na verdade, constatando aquilo que o espectador percebe ao assistir ao filme. Em Jules e Jim é patente esse jogo com o tempo. O passado, aquilo que aconteceu, é algo certo; o presente, o instante que ainda não terminou, está sendo construído; o futuro, o que ainda não aconteceu, é incerto. Sartre, em suas conversas com Simone de Beauvoir, afirmou que, no cinema, não há contingência, pois tudo é planejado pelo diretor no set de filmagens. Isto, porém, é duvidoso, pois, de acordo com Aumont,

“O filme não é algo que se domine e calcule; trata-se de criar ou recriar uma experiência, que deve ser vivida pela primeira vez durante a filmagem. Como para Bresson, o cineasta deve permanecer na in-vontade (...): depende do que ele encontrará, mas trabalha para provocar esse encontro em condições favoráveis.”

A vida é, pois, como um rio cujas águas correm sem cessar, sendo impossível voltar ao passado ou determinar o futuro. No filme de Truffaut, isto é notável, haja vista que, devido aos pathos das personagens, sobretudo, Catherine (a personagem principal), mulher de caráter volúvel e impulsivo, é impossível determinar qual será sua próxima ação. Há, pelo menos, três cenas do filme que exemplificam essa afirmação: Catherine atira-se no rio após a saída do teatro; Catherine, inesperadamente, dá uma bofetada em Jules em momento de brincadeira; Catherine, inopinadamente, corre e pede para que Jim a siga, na segunda metade do filme.

O acaso, o incerto e o pathos são o imperativo categórico de Jules e Jim. A quem assiste ao filme pela primeira vez é impossível antever as ações das personagens, as quais estão sempre subordinadas ao pathos. O passado, isto é, as águas que nunca mais retornarão, traz o sentimento de saudade, de nostalgia em relação ao passado e ao futuro, já que as personagens querem resgatar no futuro o “paraíso perdido” do passado. Quando Truffaut afirmou: “Jules e Jim é um sonho: todos nós sofremos diante do aspecto transitório da vida, e este filme nos leva a acreditar justamente (...) O sonho, a idealização cinematográfica, a apreensão do instante, leva-nos a querer que as imagens edênicas do início do filme, como, por exemplo, as férias à três, retornem novamente. Mas, como o passado não existe mais, devemos gozar o presente com intensidade, plenitude.

Pois bem, Jules e Jim é um filme sobre o instante. Cabe, portanto, enumerá-los, agora, para demonstrar que o turbilhão da vida é repleto de momentos efêmeros, porém, imbuídos do sentimento de eternidade.

(CONTINUA)


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