terça-feira, 15 de setembro de 2009

A DEMANDA DO SANTO GRAAL

Do pensamento medieval do Velho Mundo, seguindo a tradição cavalheiresca do trovadorismo, surgiram as novelas de cavalaria que narram às aventuras “maravilhosas” dos cavaleiros.

Os personagens das novelas de cavalaria são, obviamente, os cavaleiros e, basicamente, há três categorias deles: o cavaleiro tradicional (aquele que obteve o título por bravura, e, junto a seu título, terras); o cavaleiro andante, também chamado de cavaleiro namorado (da tradição trovadoresca do amor cortês e das cantigas de amor. Ele presta vassalagem à donzela, sublimando-a); o cavaleiro penitente (aquele que está em busca, em peregrinação em uma missão religiosa específica. Ele está ligado à missão sob contrato, correndo risco de excomunhão, pois empenhou sua palavra em juramento solene). É do terceiro tipo de cavaleiro que se ocupa A Demanda do Santo Graal.

São nos séculos XIII e XIV que surgem as primeiras aparições das novelas de cavalaria, e também é durante esse período que a Europa enfrenta um cenário apocalíptico de crises econômica, social e espiritual. O Cisma do Ocidente estendeu-se por quase todo século XIV e manteve a Igreja dividida entre Roma e Avignon. Essa crise no papado separou a população e os feudos num sistema em que cada pólo da disputa prestava vassalagem a um dos papas, os quais se excomungavam mutuamente. Havia-se a idéia que “metade da Europa era regida por um anticristo” e, por isso, também houve uma intensificação espiritual de cada vassalo. E, para agravar a situação, a peste bubônica ou “peste negra”, como foi chamada, devastou 1/3 da população européia. Neste cenário caótico, a fé em Deus foi o único alívio para a desesperada população, o único caminho para se alcançar o Paraíso e livrar-se do Inferno na Terra. Da necessidade de purificação espiritual nasce A Demanda do Santo Graal.

As novelas de cavalaria são divididas em cinco ciclos: o ciclo clássico, de temática Greco-latina; o ciclo carolíngio, sobre Carlos Magno; o ciclo bretão, sobre o Rei Artur e seus cavaleiros; além dos ciclos da vulgata e pós-vulgata. O ciclo ao qual pertence A demanda é o ciclo da vulgata, que é dividido em cinco livros: A História do Santo Graal, A História de Merlin, O Livro de Lancelot do Lago, A Demanda do Santo Graal e A Morte do Rei Artur.

O Santo Graal, a razão “principal” pela qual os cavaleiros saem em demanda, trata-se do cálice que José de Arimatéia coletou o sangue de Jesus Cristo em seu martírio na cruz e é, portanto, um objeto sagrado, pois o sangue de Cristo é o símbolo máximo do sagrado na religião cristã.

Como enredo, A Demanda do Santo Graal exterioriza todo o pensamento medieval que a envolve. A história inicia-se com uma reunião dos cavaleiros da Távola redonda na véspera de Pentecostes. Um escudeiro anuncia que há uma espada (Excalibur) fincada em uma pedra de mármore, e os cavaleiros tentam, em vão, arrancá-la de lá. Galaaz chega à corte e senta-se, sem saber, na cadeira destinada ao “escolhido”, e, em seguida, vai até a pedra e retira sem dificuldades a espada de Excalibur da pedra. No repasto, os cavaleiros são surpreendidos pela aparição do Graal, que irradia uma intensa luz. Assim que a aparição do cálice desaparece, Galvam sugere que todos saiam à demanda do Graal, e iniciam-se as aventuras e desventuras dos cavaleiros de Artur.

No seguinte trecho d’A Demanda estão expressas as principais idéias que fecundam essa história:

“a demanda do Santo Graal tanto quer seer como buscar as maravilhas da Santa Egreja e as cousas abscondidas e as maravilhas e as grandes puridades que Nosso Senhor não quis outorgar que homem as achasse que jouvesse em pecado mortal”.


Mais importante do que encontrar o Graal é o processo que conduzirá a ele, e o que comprova essa afirmação é o fato de todos os cavaleiros já saberem que o único que conseguirá encontrar o Graal é Galaaz, pois os presságios apontavam que ele era o “escolhido”, e mesmo assim decidem sair em demanda. O que os cavaleiros buscavam, na verdade, não era o Graal, mas a oportunidade de purgação espiritual que a demanda do Graal lhes propiciava, pois, cada obstáculo vencido era um degrau em direção à ascese que era ultrapassado.

Quanto ao escolhido, Galaaz, o seu nome vem de Galaad, que significa o “puro dos puros”, ou seja, o próprio Messias. Para poder se ter contato com o Graal é necessário estar tão puro quanto ele, ser digno dele, pois o Graal simboliza a presença de Deus, e, para tanto, somente a ascese, o processo de elevação espiritual, poderá conduzir o cavaleiro à purificação. A ascese é alcançada pelo desprezo pelo corpo, pela busca de sofrimentos e pelo culto da vida espiritual, ou seja, seguir a moral e o pensamento cristãos que regiam a Idade Média.

O cavaleiro procura as “maravilhas” em sua jornada, e elas significam a oportunidade que Deus lhe concedeu de ser posto à prova, de poder elevar-se diante da tentação. Um exemplo disso são os capítulos (107-120) que narram a passagem de Galaaz e Boorz na casa do Rei Brutos, onde a linda donzela filha do rei apaixona-se perdidamente por Galaaz e quer que ele “faça amor com ela”.


“– Por Deus, Boorz, disse Galaaz, esta é a maior maravilha que nunca vistes. Esta donzela se matou sem razão com minha espada.” (MEGALE, 1988, p.102)


O Santo Graal, mais um meio do que um fim em si mesmo, representa o mistério, aquilo que é luminoso, a própria presença de Deus em meio à crise da época, e por isso é preciso que se vá até ele, pois nele está contida a salvação. O Graal é, portanto, o referencial da ascese, aquilo que purifica a alma.

A jornada do cavaleiro era um ato penitencial contra os pecados da carne: a fornicação, a superstição, a idolatria, brigas, impurezas, bebedeiras, orgias, ambição. N’A Demanda a mulher é a fomentadora desses pecados, e, portanto, o cavaleiro deveria lutar para não deixar cair em tentação pelas “formosas donzelas”. Boorz diz a Galaaz, após a donzela suicidar-se:

“O diabo lhe fez fazer. Agora não sei o que façamos, porque seu pai não acreditará em nós, antes dirá que a matamos.” (MEGALE, 1988, p.102)


Todo o pensamento judaico-cristão utiliza-se da mulher como símbolo do pecado. A mulher é mais suscetível de cair em tentação do que o homem, mas, quando ele sucumbe ao mal é por sua causa, e isso tem sido desde Adão e Eva. A mulher é, portanto, a grande causadora das desgraças da humanidade. Esse pensamento reflete-se em duas passagens d’a Demanda. Além dos capítulos do episódio do Rei Brutos, a passagem que narra a morte da irmã de Erec, que por ele é assassinada, tem por algoz uma donzela que quer que ele mate a própria irmã por capricho seu, pois ele lhe ofertara a sua nobre palavra. Após a morte da irmã de Erec, a donzela é punida pelos Céus por uma “nuvem cheia de fogo e chama” que cai sobre ela, já ele, o fratricida que tinha a palavra empenhada a ela, torna-se um mártir ao ser assassinado sorrateiramente.

Em certo sentido, A Demanda é uma alegoria da doutrina moral e religiosa do cristianismo que buscava se afirmar através das cruzadas e um retrato vivo da Idade Média que cultuava o sagrado e o espírito, em detrimento da vida terrena. O realismo e o misticismo interpenetram-se nas aventuras e “maravilhas” dos cavaleiros em seu processo de ascese, e quando Galaaz finalmente encontra o Graal, todos os sofrimentos e penitências dos cavaleiros e da humanidade são justificados pela reconciliação com Deus.

Referências:

A Demanda do Santo Graal: manuscrito do século XIII/ texto sob os cuidados de Heitor Megale. São Paulo: T.A. Queiroz: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Por quem Peregrinam os cavaleiros de Artur. Cotia: Ed. Íbis, 1995.

http://www.coladaweb.com/hisgeral/idademedia.htm. Acesso em: 03 de abril de 2009.

Nenhum comentário: