terça-feira, 15 de setembro de 2009

UM CÂNONE PARA LITERATURA E PARA VIDA

Em “A Literatura e a formação do homem”, Antonio Candido discorre acerca da importância da literatura na formação psicológica, estética, social, religiosa e ética de cada indivíduo. Segundo ele, a literatura tem a capacidade de confirmar no homem a sua humanidade, ou seja, a “arte das palavras” tem o poder de formar e informar os homens segundo sua própria natureza, não se restringindo a critérios meramente ideológicos, como, por exemplo, um romance que tenha valor somente enquanto propaganda religiosa, feminista, marxista ou qualquer outro movimento panfletário. Em suma, à literatura não se aplicam falsos conceitos morais, pois, da mesma forma que o homem, a literatura está além do bem e do mal.

A literatura, por seu valor de arte humanizadora, não deveria apenas ser obrigatória nas escolas e universidades. Creio que, de fato, as belas-letras deveriam transcender o cenário acadêmico e abranger a todas as classes profissionais e sociais... De vez em quando, assistimos na TV a algum idealista quixotesco que distribui livros gratuitamente nos ônibus, estações de trem e metrô, além de fazer de sua humilde moradia uma biblioteca comunitária... Quando vejo esse empenho em trazer cultura e educação às crianças pobres das periferias, meus olhos chegam a lacrimejar... Como se a educação, no Brasil, fosse um ideal romântico inalcançável, ao invés de ser encarado como deve ser encarado – com razão e seriedade, e não sentimentalismo barato. Na verdade, a realidade social não muda, porque o que deve mudar não é a educação em si, mas sim a maneira que é enxergada a educação, com os olhos fechados.

No Brasil, a literatura tem se delimitado a obras nacionais. São estudadas e debatidas as mesmas obras que o eram há 50 anos atrás, como se o mundo continuasse o mesmo... Se levarmos em consideração a atual grade curricular dos cursos de Letras nas universidades, perceberemos facilmente a presença de obras que compõe o cânone da literatura brasileira e portuguesa como: Gil Vicente, Luís Vaz de Camões, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Gregório de Matos, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Gonçalves Dias, Castro Alves, Visconde de Taunay, Machado de Assis, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo...

É inquestionável a qualidade das obras destes autores, sobretudo, de Machado de Assis e Eça de Queirós. Pois bem, se são esses os autores que compõe o cânone luso-brasileiro, eles devem ser estudados; mas, não há motivos para que se estude Gregório de Matos e Alexandre Herculano durante todo um bimestre ou, como às vezes ocorre, durante um semestre inteiro!!!

Se Gregório de Matos faz parte do cânone literário, estudaremos os aspectos relevantes de sua obra, e o mesmo é válido para qualquer outro autor. Mas, na literatura universal há autores muito maiores em dimensões estética, filosófica e social do que Gregório de Matos, como, por exemplo, Goethe, Shakespeare, Dante, Cervantes, Tolstoi, Kafka, Victor Hugo, etc. A lista é interminável. Se fôssemos examinar cuidadosamente cada autor que eu citei acima, seriam necessárias décadas de estudo. Contudo, o problema não pára por aí. O mais injusto é o fato de autores contemporâneos ou de países sem tradição literária serem relegados a um segundo plano, às vezes, a um terceiro plano, ou menos ainda.

Inegável é o fato de que certas obras resistem ao tempo e se mantêm atuais, devido ao seu caráter universal, mas nada impede que, nos cursos de Letras, se estude Domingos Pellegrini, Luís Fernando Veríssimo, Reinaldo Moraes, entre outros autores de nossa época que são totalmente desconhecidos do público leitor, justamente por não se enquadrarem ao cânone da literatura brasileira dos séculos XVII e XVIII.

Hegel teoriza brilhantemente, em “Introdução à história da filosofia”, que cada período histórico é fecundado por um pensamento, ou seja, A Moreninha e Inocência faziam sentido somente para quem viveu durante aquele período (início do séc. XIX), e isto é ainda mais evidente por toda a história da literatura brasileira até o final do Romantismo. De acordo com Hegel


“As relações que medeiam entre história política, formas do Estado, arte e religião, e a filosofia, não se devem ao fato de serem aquelas a causa da filosofia, como esta, por seu turno, não é causa daquelas; tanto uma como as outras têm conjuntamente a mesma raiz comum: o espírito do tempo. É sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias partes; e estas, por sua vez, não contêm coisa alguma de heterogêneo à condição fundamental dele, pois que podem aparecer diversas e acidentais, embora se afigure que muitas delas se contradizem mutuamente.” (HEGEL, 1974, p. 361)


Se compararmos essa visão da história com o cânone da literatura brasileira, compreenderemos a razão de um país tão promissor quanto o Brasil ser uma nação tão atrasada e provinciana, com o pensamento quase medieval... Irônico também é o fato dos sociólogos e políticos questionarem o que motiva a violência em nossa sociedade, ora, que aluno se interessará pelo destino de Cecília e Peri e pelas características do Romantismo, se o novo videogame interativo em 3D lhe faz sentir poderoso, subjugando inocentes com a violência banalizada em nosso cotidiano?

Em uma cultura onde se exibe em programas de auditório a salada de frutas recheada de bundas enormes e seios “siliconizados” e todos aplaudem, que garoto de 10 a 17 anos vai querer saber da sensualidade e dos lábios de mel de Iracema? A única via para a humanização dessa sociedade imbecilizada pela indústria cultural, termo que empresto de Adorno, é apresentar coisas que realmente tenham alguma importância a essas pessoas.

Se as artes são miméticas, como disse Aristóteles, a literatura tem o dever de nos lançar contra o rosto a tragédia deste início de século, a nossa realidade, e os professores têm a obrigação de se atualizarem, pois se o mundo mudou, a literatura também.

Talvez seja ingenuidade minha crer que a literatura possa mudar o mundo, mas, se um único livro foi capaz de dominar a cultura ocidental por 2000 anos, não custa nada tentar. Somente uma nova visão sobre o que é literatura irá modificar a realidade educacional brasileira, e, talvez, quem sabe, a realidade social e política desse conceito abstrato que se chama Brasil. A literatura tem o poder de transformação do homem, é uma das poucas certezas que tenho, mas, antes do homem, o que precisa mudar é a visão sobre a literatura. Quem sabe, talvez, se passarmos a valorizar o que é novo, revitalizado, universal, o que rompe os paradigmas obsoletos, um dia, veremos nascer um novo Shakespeare, um novo Dostoievski, um novo Machado de Assis ou, até mesmo, um novo José de Alencar.



REFERÊNCIAS

HEGEL, Georg Friedrich. A Fenomenologia do espírito. Estética: a idéia e o ideal. Estética: o belo artístico e o ideal. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores)

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