terça-feira, 15 de setembro de 2009

EXPULSANDO PLATÃO DA REPÚBLICA: A METAFÍSICA DO BELO EM NIETZSCHE E SCHOPENHAUER

A arte, para Platão, é imitação do mundo sensível, ou seja, é imitação da imitação da idéia. Schopenhauer refuta explicitamente esse conceito platônico em, pelo menos, quatro passagens de O Mundo como Vontade e Representação.

“A arte reproduz as idéias eternas que concebeu por meio da contemplação pura, isto é, o essencial e o permanente de todos os fenômenos do mundo. (...) A sua origem única é o conhecimento das idéias; o seu fim único, a comunicação desse conhecimento.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 194)

“A obra de arte é apenas um meio destinado a facilitar o conhecimento, conhecimento que constitui o prazer estético.” (SCHOPENHAUER, 2001, p.204)

“As idéias (no sentido platônico) são a objetivação adequada da vontade. O fim de todas as artes é estimular o homem para reconhecer as idéias. Conseguem-no através da reprodução de objetos particulares (as obras de arte não são outra coisa) e através de uma modificação correspondente do sujeito que conhece. As artes não objetivam portanto a vontade diretamente, mas por intermédio das idéias. Ora, o mundo é apenas o fenômeno das idéias multiplicado indefinidamente através da forma do principium individuationis, única forma do conhecimento que está ao alcance do indivíduo enquanto indivíduo.” (SCHOPENHAUER, 2001 270-271)

“(...) a arte como manifestação suprema e acabada de tudo o que existe, visto que, por essência, ela nos provoca a mesma coisa que aquilo que o mundo visível nos mostra, mas mais condensada, mais acabada, com escolha e reflexão, e que, por conseguinte, podemos chamar-lhe floração da vida, na plena acepção da palavra. Se o mundo considerado como representação é no seu conjunto apenas a vontade tornada sensível, a arte é precisamente essa sensibilidade tornada mais nítida ainda;” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 281)


PLATÃO vs. SCHOPENHAUER & NIETZSCHE


Na passagem abaixo de A República, Platão discorre acerca da verdadeira essência da realidade. Utilizando-se do exemplo da cama, ele afirma que existem três camas a serem avaliadas a partir de uma representação artística desse objeto. A cama representada pelo pintor, a cama montada pelo artesão e a idéia perfeita e eterna dessa cama, que é criada por um Ser também perfeito, ou seja, Deus.


“– Ora pois, se ele não faz o que é, não faz o objeto real, porém um objeto que se assemelhe a este, sem ter a sua realidade; e, se alguém dissesse que a obra do marceneiro ou de qualquer outro artesão é perfeitamente real, haveria possibilidade de que se dissesse algo falso, não?” (PLATÃO, 1973, p.221)


Logo no início do Livro X, o filósofo, cujo alter-ego é Sócrates, conversa com Glauco e diz-lhe que os poetas deveriam ser excluídos da cidade (República) por fazerem uma arte imitativa, assim como todas as outras artes também o são. Esse ponto de vista, sem dúvida, leviano e preconceituoso, apega-se a uma idéia unívoca para fundamentar um pensamento que parte de princípios morais.

Para Platão, a idéia da cama pertencia a uma realidade extra-sensível, perfeita, infinita e eterna. Esse mundo das idéias era regido por um Ser superior, e, portanto, eram atribuídos a ele o Bom, O Belo e A Verdade, que são, a priori, princípios morais.

Nietzsche, um dos maiores críticos da metafísica socrático-platônica, em seu livro Crepúsculo dos Ídolos, explica o problema de se tomar o efeito pela causa, segundo ele,

“Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser em última instância verdadeiros: eles só possuem valor como sintoma, eles só podem vir a ser considerados enquanto sintomas. Em si, tais juízos são imbecilidades” (NIETZSCHE, 2000, p. 18)


Além de se utilizar de preceitos morais para tratar de um problema ontológico, Platão, a partir desse dualismo entre mundo sensível e mundo das idéias, tenta aplicar a Estética um conceito débil, quando, por exemplo, buscamos compreender uma arte como a música. Vale lembrar que o filósofo, ao tratar das artes sonoras, elegeu a poesia, exemplo ineficaz diante da verdadeira “arte do som”.

Para Schopenhauer, seguindo a tradição helênica, a beleza humana era a mais perfeita objetivação da vontade, era a criação da coisa em si (Kant). Já as artes eram criações humanas, porém inspiradas pela vontade, o que Nietzsche chamava de gênio dionisíaco.

Tanto Nietzsche como Schopenhauer consideravam a música como a mais elevada forma de arte, para eles, essa arte era a expressão imediata do Uno - primordial (vontade). “(...) a minha explicação obriga-nos a considerar a música como a cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 270). Ou seja, a música é a própria vontade reproduzida no mundo sensível.

Para se entender melhor os conceitos de Nietzsche e Schopenhauer seria necessário a seguinte analogia da história da filosofia:

Platão: Mundo das Idéias –> Mundo Sensível

Kant: Coisa em si –> Fenômenos

Schopenhauer: Vontade –> Representação

Nietzsche: Uno – primordial –> Principium individuationis


A partir dessa relação entre a causa e o efeito, entre o ego e o mundo, torna-se estéril esse pensamento platônico, quando defrontado com a máxima cartesiana do Cogito, ergo sum. Pois, como poderia minha individualidade ser uma aparência, uma mentira, se tenho consciência do meu eu? Mais sensato seria o conceito de que o mundo sensível é a objetivação do mundo das idéias, e não apenas uma falsa aparência.

A arte, por meio do intelecto, conseguiria romper a individuação e reconciliar o homem com o seu Uno. Pois, o homem, único ser dotado de razão, carrega consigo, em sua essência, aquilo que foi separado pela individuação, ou seja, quando nasceu. A alma traz consigo impressões do mundo das idéias (seguindo o termo platônico), pois a ele pertencia quando ainda não havia se separado pelas barreiras do principium individuationis. Somente através dos sentidos, ou seja, pela absorção da arte, o Uno reconciliar-se-á com o intelecto (a Vontade individualizada do sujeito.)

O principium individuationis somente é rompido e o sujeito reintegrado a Vontade em três situações: a morte, o amor e a arte.

Mesmo Platão, em um diálogo de Fedro, antes de enveredar-se ao equívoco no Livro X de A República, trazia a idéia que mais tarde inspirou a Schopenhauer.

“Na natureza primitiva, diz, além, dos gêneros masculino e feminino, existia o andrógino, que participava de ambos os sexos. A forma de cada indivíduo era totalmente redonda, e tinha quatro braços e quatro pernas, uma só cabeça, quatro orelhas e dois órgãos sexuais. Desse modo podia caminhar tanto para frente como para trás. O macho descendia do sol, a fêmea da terra e o andrógino da lua. Os andróginos eram terríveis por seu vigor e força. Na sua arrogância atentaram contra os deuses, e Zeus, como castigo, decidiu cortá-los em dois, para fazê-los mais débeis. (...) A partir desse momento, conclui o relato de Aristófanes, o amor é o desejo e a persecução do todo primitivo. Sem dúvida, esta conclusão fecha plenamente com o ponto de vista de Platão, pois nele o amor é aspiração à plenitude originária da idéia.” (HARTMANN, p. 23)


O amor entre dois indivíduos é a busca em reconciliar o Uno – primordial, e isto só acontece provisoriamente, quando o ato sexual é consumado. Paixão, do grego: pathos, significa sofrer. Paixão é, portanto, a eterna aspiração ao todo, é a busca de romper a barreira da individuação.

Quanto à morte, Andrés Sanchez Pascual, em seu prefácio a O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, afirma:

“Tudo é uno (...) A vida é como uma fonte eterna que produz constantemente individuações e que, ao produzi-las, se desgarra de si mesma. Por isso a vida é dor e sofrimento: a dor e o sofrimento de ver despedaçado o Uno primordial. Mas ao mesmo tempo a vida tende a reintegrar-se, a sair de sua dor e reconcentrar-se em sua unidade primeira. E essa reunificação se produz com a morte, com o aniquilamento das individualidades. Por isso a morte é o prazer supremo, enquanto significa o reencontro com a origem.” (2004, apud NIETZSCHE, 2007, p.7-8)


Morte e amor significam, por conseguinte, reunificar-se ao Uno – primordial, ou seja, a Vontade. Mas por que a arte, o prazer estético produz em nós a mesma sensação que o amor e a morte?

A resposta é: Com a arte a barreira das individuações também é rompida. Essas individuações nada mais são do que a separação do intelecto do sujeito daquilo que lhe deu origem, ou seja, a Vontade. Por isso, a razão trabalha sempre em função da auto-preservação (Vontade). Segundo Schopenhauer,

“Em regra geral, o conhecimento permanece sempre a serviço da vontade, do mesmo modo que ele nasceu para este destino e está, por assim dizer, implantado sobre a vontade como a cabeça está sobre o tronco.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 186)


Para Schopenhauer, todas as artes, com exceção à música, estão subordinadas à idéia, que, por conseguinte, é a expressão individual (do sujeito) da Vontade. De acordo com ele,

“A idéia é a unidade que se transforma em pluralidade por meio do espaço e do tempo, formas de uma percepção intuitiva; o conceito, pelo contrário, é a unidade extraída da pluralidade, por meio da abstração que é um procedimento do nosso entendimento; o conceito pode ser chamado unitas post rem, a idéia, unitas ante rem (...) a idéia (...) revela àquele que a concebeu representações completamente novas do ponto de vista do conceito de mesmo nome: ela é como um organismo vivo, que cresce prolífico, capaz, em uma palavra, de produzir aquilo que não se introduziu lá.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 247)


Por isso Platão equivoca-se ao afirmar que o artista busca inspiração na realidade sensível, realidade essa que não passa de uma aparência do mundo das idéias. Segundo ele, “(...) o criador de imagens, o imitador, dizemos, nada entende da realidade, conhece apenas a aparência” (PLATÃO, 1973, p. 228)

A teoria de Schopenhauer contraria o princípio platônico de que tanto a pintura, quanto a escultura, a poesia, etc., são artes imitativas, pois, essas artes não buscam representar a falsa realidade (aparência), mas sim expressar in continenti a idéia da razão, ou seja, o artista não reproduz a aparência, ele apenas obedece ao instinto criativo da Vontade.

Não apenas a música, como também as demais artes, exprime diretamente as idéias, a intuição do gênio criador. Schopenhauer afirma que

“A arte em todas as suas formas, tem, portanto, sempre por finalidade exprimir a idéia. O que distingue as diferentes artes é o grau de objetivação da vontade, representado pela idéia em cada uma delas; disso depende também a matéria própria de cada arte” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 265)


O artista, seja ele poeta, pintor, escultor ou cineasta, está sempre expressando uma idéia. A intuição criativa do artista está diretamente ligada à Vontade. O que diferencia a música das demais artes é que ela é expressão da Vontade enquanto Vontade, já as outras artes são expressões de uma idéia que está sempre subordinada à Vontade. Arte é, portanto, reprodução da Vontade, mesmo que por vias diferentes.

Outro equívoco de Platão é colocar todas as artes em um mesmo nível de comparação. Schopenhauer, brilhantemente, percebeu a diferença entre a música das demais manifestações da Vontade. Schopenhauer afirma:

“Mas a música, que vai para além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal; ignora-o totalmente, e poderia de algum modo continuar a existir, na altura em que o universo não existisse: não se pode dizer o mesmo das outras artes. A música, com efeito, é uma objetidade, uma cópia tão imediata de toda vontade como o mundo o é, como o são as próprias idéias cujo fenômeno múltiplo constitui o mundo dos objetos individuais. Ela não é, portanto, como as outras artes, uma reprodução das idéias, mas uma reprodução da vontade como as próprias idéias.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 271)


Schopenhauer considera a música como a organização da Vontade enquanto sistema. Segundo ele, “o mundo poderia chamar-se tanto uma encarnação da música como uma encarnação da vontade (...)” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 275-276). A música é, portanto, a tradução imediata do espírito, é a Vontade enquanto arte.

De acordo com Schopenhauer,

“(...) numa linguagem eminentemente universal, ela exprime de uma única maneira, através dos sons, com verdade e precisão, o ser, a essência do mundo, em uma palavra, o que concebemos pelo conceito de vontade, porque a vontade é a sua mais visível manifestação.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 278)

Chegamos à conclusão de que toda manifestação artística, ao contrário do que preconizava Platão, não representa uma falsa impressão da realidade, mas sim reproduz direta ou indiretamente (através da idéia) a própria essência do Ser (coisa em si, para Kant; mundo das idéias, para Platão). De acordo com Schopenhauer,

“(...) ‘a essência da vida’, a vontade, a própria existência é uma dor constante tanto lamentável como terrível; e de que, por outro lado, tudo isto, encarado na representação pura ou nas obras de arte, está liberto de toda dor e apresenta um espetáculo imponente. Este lado puramente conhecível do mundo, a sua reprodução através da arte sob uma forma qualquer, é a matéria sobre a qual trabalha o artista. Ele é cativado pela contemplação da vontade na sua objetivação; ele pára diante desse espetáculo, não deixando de admirá-lo e de reproduzi-lo, mas, durante esse tempo, é ele mesmo que paga as despesas da representação; em outras palavras, ele próprio é essa vontade que se objetiva e que permanece só com a sua eterna dor. Este conhecimento puro, profundo e verdadeiro da natureza do mundo torna-se ele mesmo a finalidade do artista de gênio: este não vai mais longe.” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 281)


Referências:

PLATÃO. A República. Trad.: J. Guinsberg. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. Trad.: M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos (ou como filosofar com o martelo). Trad.: Marco Antonio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Trad.: Antonio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2007.

HARTMANN, Hélio Roque. Lições de Estética Filosófica.

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